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Foto do escritorFlávio Lira

Sustentabilidade em hidrogênio: cúmplice natural ou parceiro de conveniência?

Os últimos anos têm sido muito importantes para o desenvolvimento do hidrogênio como uma possibilidade cada vez mais aventada na diversificação da matriz energética de diversos países. Além disto, o hidrogênio também tem sido visto, em seus formatos menos carbono-intensivos, como um componente relevante na transição energética. Afinal de contas, a sua versatilidade, aliada aos esforços de diversos atores para descarbonizar a suas economias, parece indicar um caminho, ainda que nem sempre fácil de se trilhar, promissor para aqueles que desejam aliar segurança energética e responsabilidade ambiental. Porém, será que o momento atual dos diversos programas de hidrogênio mundo afora sinaliza uma guinada rumo à diversificação de matrizes energéticas e, principalmente, rumo a um arranjo energético globalmente mais sustentável?


A indústria do hidrogênio pode ser edificada através de diversas rotas, podendo estas ter um caráter ou mais “disruptivo” ou mais ancorado na tradicionalidade energética de determinada localidade. Em outras palavras, podemos observar que existem projetos que buscam desenvolver a indústria do hidrogênio de forma vinculada às bases já estabelecidas na indústria de energia de um determinado local ou, então, desenvolvê-la de maneira relativamente autônoma, sem depender tanto do arranjo energético industrial local. E isto pode afetar não somente o desenvolvimento desses projetos como o seu caráter ambientalmente sustentável.


Peguemos dois exemplos já tradicionais, no caso do hidrogênio, para ilustrar esta questão: o hidrogênio cinza e o hidrogênio verde. Países que contam com um parque de refino relativamente estabelecido, no qual o hidrogênio cinza é mais facilmente obtido através de estruturas já implantadas, terão menos dificuldade de desenvolver uma economia de hidrogênio a partir desta realidade. Assim, há maior facilidade, tanto técnica quanto de investimentos, para que o deslanchar das capacidades de H2 se baseie nas estruturas cinzas que este país já possui, o que (havendo aporte moderado para aumentar a sustentabilidade desse desenvolvimento) pode resultar em um consequente enfoque no H2 azul, talvez uma evolução “natural” da indústria de hidrogênio cinza.


Este mesmo país ou localidade, caso quisesse investir mais pesadamente no desenvolvimento de uma indústria de hidrogênio verde, contudo, teria que considerar diversos fatores relacionados a não somente incentivos/investimentos e à origem destes (considerando-se que a produção de H2 verde segue sendo relativamente cara). Também seria necessário levar em conta o peso de atores interessados no crescimento ou no não crescimento desta indústria verde em determinado local, o poder que tais atores têm de organizar e estabelecer pautas energéticas e ambientais, e os riscos e promessas advindos de um eventual redirecionamento de parte da indústria energética rumo à produção de H2 verde. Trocando em miúdos, seria mais interessante um desenvolvimento da indústria de hidrogênio pautado na opção mais “segura”, ou seja, com menor ousadia no que tange a grandes reestruturações, ou uma aposta na disrupção sustentável, o que pode ir contra a inércia estrutural que torna mais vagarosa a desejável transição energética?


O que podemos perceber é que, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas de hidrogênio, não há sempre automaticamente uma escolha entre um modelo verde e um modelo “não verde”. Tem-se desenhado no mundo, continuamente, uma complexa mescla de decisões e planejamentos governamentais, como por exemplo no Brasil, nos Estados Unidos e, cada vez mais, na própria União Europeia. Estas sinalizam o desejo de se abrir determinadas jurisdições a investimentos resultantes do que muitos veem como a inevitável chegada “para ficar” do hidrogênio sustentável (cada vez menos do H2 exclusivamente verde). Estas unidades políticas, ao que parece, não querem perder o bonde, sabendo que esta aparenta, para muitos, ser uma indústria promissora. Para além disso, no que for possível, têm o desejo de pautar este desenvolvimento com maior agência e participação – portanto, de forma menos passiva. Porém, ao mesmo tempo, podem não desejar se comprometer exclusiva ou mesmo preponderantemente com um modelo de desenvolvimento de hidrogênio que afaste outros formatos, algo talvez compreensivo dada a novidade de uma suposta economia do hidrogênio global. Ou seja, foca-se cada vez menos no termo hidrogênio verde e cada vez mais no termo amplo hidrogênio sustentável. Seria isto positivo, no fim das contas, pois amplia possibilidades de ações sustentáveis, ou será que isto difunde o foco que poderia ser direcionado ao hidrogênio oriundo de energia solar e eólica, comparativamente menos impactante ambientalmente[1]?


Tal “cautela”, embora justificável desde uma perspectiva de negócios, carrega em si riscos relativos a uma possível lentidão no desenvolvimento de uma indústria de H2 sustentável (o que espelha problemas similares relacionados a decisões de investimentos em transição energética como um todo). Além disto, dúvidas relativas ao controle intelectual e à autoria do desenvolvimento de tecnologias específicas para essa indústria não são menos presentes (quem possui tais tecnologias e quem poderá utilizá-las – e sob quais condições?). Isto pode criar um ambiente menos propício ao desenvolvimento e à cooperação internacional em hidrogênio sustentável, pois indica a ausência de uma preocupação majoritariamente socioambiental no que tange à indústria de H2, o que tende a pulverizá-la sob lógicas locais de segurança energética, interesse econômico e sustentabilidade. Se, por um lado, isto pode ser salutar no que diz respeito à maior independência de jurisdições em relação a projetos locais (o que pode contribuir para soluções diversas em H2 sustentável), isto também pode levar a um enfraquecimento de políticas regionais e globais de H2, cuja vítima poderá ser, infelizmente, a sustentabilidade. Esta ainda é, não nos esqueçamos, um dos carros-chefes do renascimento do hidrogênio que estamos vivendo. Será que se manterá desta forma?


No fim das contas, o desenvolvimento do hidrogênio sustentável, qualquer que seja a definição utilizada para isto, se insere em uma lógica maior de transição energética (TE), a qual, seja celebrada ou criticada (ou ambas!), já faz parte do vocabulário de boa parte da população. Uma década atrás, pouquíssimas pessoas fora da academia ou do mercado de energia saberiam explicar o que é transição energética. A atual evolução para uma conceitualização de transição energética justa (TEJ) já indica que as próprias críticas às visões anteriores contribuíram para um refinamento de algo que, para muitos, já aparentava ser disruptivo. As críticas que se tornam cada vez mais numerosas, agora em relação ao hidrogênio verde como modelo exclusivo e preferível, também vêm contribuindo para que termos mais diversos surjam, o que é salutar para pensarmos e fazermos jus à promessa singular que o hidrogênio pode representar para a matriz energética global.


Cumpre não esquecermos que a ampliação das possibilidades e das rotas de hidrogênio elegidas por diversos atores não deve abandonar os ímpetos iniciais que fizeram (ao menos no discurso) que ele ressurgisse como a nova “bala de prata” do mundo da energia: a sustentabilidade e a justiça ambiental como os denominadores comuns deste novo elemento. Somente desta forma esta nova promessa não será mais uma moda correndo o risco de sucumbir a lógicas que a tirarão do universo originário da descarbonização e da luta contra as ainda presentes poluição e pobreza energéticas.


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Nota:

[1] Dados os insumos para a produção de usinas solares e eólicas (além da utilização de água para a produção de hidrogênio por eletrólise), é também controversa a ideia de que o hidrogênio verde seja realmente sustentável. Cf. Owusu et al., 2016; Hamed, Alshare, 2022; Cremonese et al., 2023.

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Referências:


BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Plano de Trabalho Trienal - PNH2. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/PlanodeTrabalhoTrienalPNH2.pdf. Acesso em: 26 jul. 2024.

COMISSÃO EUROPEIA. European Union and industry reaffirm the drive to boost EU battery manufacturing thanks to the agreement on the Battery Regulation. 2024. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_24_2851. Acesso em: 27 jul. 2024.

RAVA, L. Afinal de contas, quais são as possíveis cores do hidrogênio e por que elas importam? in HGPol, 2024. Disponível em: https://www.hgpol.org/post/afinal-de-contas-quais-s%C3%A3o-as-poss%C3%ADveis-cores-do-hidrog%C3%AAnio-e-por-que-elas-importam-1. Acesso em: 26 jul. 2024.

U.S. DEPARTMENT OF ENERGY. Clean Hydrogen Strategy and Roadmap. 2024. Disponível em: https://www.hydrogen.energy.gov/library/roadmaps-vision/clean-hydrogen-strategy-roadmap. Acesso em: 27 jul. 2024.

CREMONESE, L.; MBUNGU, G. K.; QUITZOW, R. The sustainability of green hydrogen: An uncertain proposition. International Journal of Hydrogen Energy, v. 48, n. 51, p. 19422-19436, 2023. ISSN 0360-3199. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2023.01.350. Acesso em: 28 jul. 2024.

HAMED, T. A.; ALSHARE, A. Environmental Impact of Solar and Wind Energy - A Review. Journal of Sustainable Development of Energy, Water and Environment Systems, [online], v. 10, n. 2, p. 1090387, 2022. DOI: https://doi.org/10.13044/j.sdewes.d9.0387. Acesso em: 28 jul. 2024.

OWUSU, P. A.; ASUMADU-SARKODIE, S.; DUBEY, S. A review of renewable energy sources, sustainability issues and climate change mitigation. Cogent Engineering, [online], v. 3, n. 1, 2016. DOI: https://doi.org/10.1080/23311916.2016.1167990. Acesso em: 29 jul. 2024.



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