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  • Foto do escritorLaila Rava Salvadora Santos

O PL 725/2022 e o hidrogênio sustentável


Recentemente, foi publicado o Projeto de Lei (PL) nº 725/2022, que estabelece mecanismos para a inserção do hidrogênio no setor energético nacional e os parâmetros para a promoção do uso seu uso sustentável no país. Entender as especificidades deste projeto de lei torna-se importante para a elucidação das características da política nacional de hidrogênio e dos desafios que a lei visa superar.


Resumidamente, o projeto de lei propõe a alteração da lei nº 9.478/1997, a qual dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relacionadas ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética, entre outras providências. Esta lei não faz menção ao hidrogênio (apesar do programa nacional do hidrogênio já ser atualmente instituído por meio de resolução governamental). O projeto de lei prevê a modificação do artigo 1º da lei atual, inserindo o hidrogênio, de modo explícito e em forma de lei, como vetor energético para a transição para uma economia de baixo carbono, além da consolidação de sua produção nacional em bases competitivas e sustentáveis como um dos objetivos da política energética nacional.


O projeto de lei prevê a inserção de definições dos conceitos de hidrogênio e hidrogênio sustentável, este sendo o hidrogênio produzido a partir de fontes solares, eólicas, biomassa, biogás e hidráulicas. Sobre este ponto, convém elucidar que a lei menciona o hidrogênio sustentável e não o hidrogênio verde, especificamente. O hidrogênio sustentável, como exposto na própria definição, é um conceito mais amplo do que quando se fala de hidrogênio produzido apenas a partir da hidrólise da água (veja a postagem sobre as cores do hidrogênio).


Considera-se que a opção legislativa de definir o conceito na própria lei (interpretação autêntica) é compatível com a atual especificidade da política nacional brasileira de hidrogênio – destinada a investir nas diferentes “cores” do hidrogênio e referida por muitos como a política do “arco-íris”. Além disto, os conceitos de hidrogênio verde e hidrogênio sustentável tendem a ser utilizados de forma indiferenciada, o que demonstra a necessidade do uso da interpretação autêntica como técnica hermenêutica. Além disso, internacionalmente não existe uma definição padronizada de hidrogênio sustentável, o que pode causar problemas interpretativos.


Em um documento publicado pelas Nações Unidas, a necessidade de criação de uma terminologia internacionalmente reconhecida para a definição de hidrogênio sustentável foi apresentada, além da observação de uma crítica à utilização das cores do hidrogênio como qualificação das características sustentáveis. A crítica se baseia no fato de que a classificação convencional do hidrogênio em cores apresenta um déficit de referências quantitativas, sendo subjetiva a arbitrariedade e inconsistências.


Nesse contexto, apesar do projeto de lei se afastar da tendência de definir o hidrogênio em cores, ele apresenta, por outro lado, uma definição nacional do hidrogênio. Desta forma, ele pode ser considerado uma escolha política derivada de uma perspectiva decolonial do termo, ou seja, considerando que uma definição nacional é mais apta às especificidades da cadeia de produção de hidrogênio brasileira, além de ser compatível, como mencionado previamente, com a política de hidrogênio nacional “arco-íris”. De fato, o próprio senador Prates, de acordo com uma notícia publicada pela UDOP, esclareceu que uma definição abrangente de hidrogênio sustentável foi utilizada para favorecer a possibilidade de diversificação na cadeia produtiva:


Fizemos isso porque, a depender do conceito mais estrito de hidrogênio verde utilizado, poderia se restringir incentivos a apenas uma de diversas tecnologias de produção, enquanto o Brasil tem condições de produzir hidrogênio de formas diversas e, inclusive, a partir do processamento do etanol de cana, por exemplo (epbr, 2022).


Um ponto crítico que deve ser destacado, mas que pode ser suprido com posteriores regulamentos governamentais, são os parâmetros para certificar que o hidrogênio se enquadre no conceito de hidrogênio sustentável, o que traz consigo ao mesmo tempo flexibilidade e discricionaridade. A questão é entender, com o tempo, qual é a melhor técnica legislativa.


De mais em mais, o projeto de lei, em seu artigo oitavo, procura atribuir explicitamente à ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) a competência no âmbito da cadeia do hidrogênio. Observa-se:


Art. 8. A ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: (.......) XXXVI – regular, autorizar e fiscalizar a atividade da cadeia do hidrogênio, inclusive a produção, importação, exportação, armazenagem, estocagem, padrões para uso e injeção nos pontos de entrega ou pontos de saída (NR).


Até o momento, não existe um órgão oficialmente responsável pela cadeia de hidrogênio no Brasil. Em âmbito regulatório, a atribuição de um órgão competente é muito importante para fins legais, de facilitação de construção de políticas e de organização, principalmente considerando-se que a produção de hidrogênio envolve múltiplos setores.


Por fim, a lei busca resolver um ponto crítico quando se fala da introdução do Brasil no mercado do hidrogênio: resolver os desafios do alto custo derivado, da falta de infraestrutura e das dificuldades no transporte. Sendo assim, é prevista a injeção do hidrogênio em dutos de gás natural (5% a partir de janeiro de 2032 e 10% a partir de 2050), prevendo, dentro dessa porcentagem, determinadas proporções obrigatórias de hidrogênio sustentável.


Art. 4º A adição de hidrogênio no ponto de entrega ou ponto de saída nos gasodutos de transporte seguirá percentuais mínimos obrigatórios em volume, na seguinte progressão:

I – 5%, a partir de 1º de janeiro de 2032;

II – 10%, a partir de 1º de janeiro de 2050.

§1º O volume de que trata o caput deverá conter proporção obrigatória de hidrogênio sustentável de no mínimo 60%, no caso do inciso I, e de no mínimo 80%, no caso do inciso II. §2º.

O percentual de que trata o caput poderá ser escalonado de forma incremental em parcelas, de acordo com a capacidade de segurança de transporte e abastecimento.


Nesse sentido, vale esclarecer que a premissa é que o hidrogênio produzido por fontes sustentáveis pode ser injetado em dutos de gás natural e as misturas resultantes (processo chamado de blending) podem ser usadas para gerar energia com emissões mais baixas do que a utilização exclusiva do gás natural. Isto fornece uma informação importante sobre a escolha legislativa presente na lei, mas requer uma explicação mais detalhada.


Em primeiro lugar, deve-se considerar que a produção de hidrogênio com baixo teor de carbono é atualmente cara. Porém, de acordo com a IEA, um fornecimento de gás que inclua hidrogênio com baixo teor de carbono não só significaria emissões menores de CO2, mas também ajudaria a aumentar a produção de hidrogênio e assim reduzir seus custos. Além disso, não existe hoje uma infraestrutura estabelecida para o transporte de hidrogênio: a infraestrutura de gás natural existente em muitos países poderia, portanto, ser usada para transportar hidrogênio a custos mais baixos do que seria o caso se fosse necessário construir novos gasodutos dedicados a ele. Entretanto, os regulamentos sobre mistura de hidrogênio hoje em dia são geralmente baseados nas especificações de fornecimento de gás natural ou na tolerância do equipamento mais sensível da rede. Como resultado, só são permitidos níveis muito baixos de mistura: em muitos países, não mais do que 2% de mistura de hidrogênio.


Portanto, como previamente mencionado, quando se fala de transporte de hidrogênio usando gasodutos, há, em tese, três opções: (1) construir novos gasodutos para transportar o hidrogênio, especificamente; (2) mudar a estrutura existente de transporte de gás natural para suportar o transporte de hidrogênio (para aprofundar o conhecimento recomenda-se o presente artigo de Jens at al., 2021); e (3) a terceira opção, que é a adotada no projeto de lei, e também a mais econômica, é a mistura de certas quantidades de hidrogênio com o gás natural e a utilização de suas estruturas. De fato, a opção adotada pela legislação brasileira é reconhecida como sendo conveniente para diminuir as emissões de carbono em setores de difícil descarbonização. O ponto crítico, que não pode deixar de ser evidenciado, está no fato de que a proporção de hidrogênio sustentável adicionada nos gasodutos necessariamente deverá ser mínima, considerando que a adição em altos níveis não é factível por requerer ulteriores pesquisas para a garantia da segurança na utilização das redes existentes. Ela deve ser, portanto, considerada como uma das ferramentas para a transição energética, ou como uma fase transitória, e não como uma solução suficiente para a criação do mercado de hidrogênio.


De fato, uma pequena quantidade de hidrogênio em combinação com gás natural não representa problemas técnicos no transporte e no uso da mistura resultante (embora problemas de segurança possam surgir) devido às suas características de combustão, que diferem das do gás natural. Como mencionado, diferentes países do mundo impuseram limites na porcentagem de mistura de hidrogênio no gás natural nas redes de distribuição. No gráfico a seguir, publicado pela IEA em uma pesquisa sobre eficiência energética, foi constatado que dentre os países da União Europeia onde o blending de hidrogênio é aceito, a Alemanha é o país mais permissivo, com o limite de 10%, o que, a propósito, se mostra de acordo com os percentuais do projeto de lei da legislação brasileira.

Limites atuais da mistura de hidrogênio em redes de gás natural e demanda per capita em localidades selecionadas (IEA, 2022)

Como exposto por Vittoria Melo, a necessidade de diminuir a emissão de gases de efeito estufa, juntamente com a busca de segurança na oferta de energia, impulsiona o desenvolvimento de tecnologias para o uso de energia renovável. A emergência climática requer ações em diferentes setores para uma eficiente transição energética e, neste contexto, o hidrogênio verde e/ou sustentável se mostra como uma resposta conveniente – especialmente para os setores de difícil descarbonização. Países onde fontes de energia renovável se verificam em abundância e são de fácil obtenção possuem vantagens na produção de hidrogênio verde com maior viabilidade econômica. Portanto, sendo reconhecido o potencial brasileiro no âmbito da produção de hidrogênio verde e/ou sustentável e considerando o atual estado da legislação brasileira relacionada ao hidrogênio (ainda em estado embrionário), o projeto de lei sem dúvidas representa um avanço, especialmente considerando os desafios para a introdução do hidrogênio no mercado a preços competitivos. O projeto de lei apresenta as características da política de hidrogênio brasileira e o que é importante para se atingir um ambiente de maior segurança para futuros investidores, sendo um importante passo para a regulação do setor.


REFERÊNCIAS


ARBO, 2021. OPPORTUNITIES & OBSTACLES FOR HYDROGEN AS A NET-ZERO FUEL. Disponível em https://www.goarbo.com/hydrogen-natural-gas-pipeline. Acesso em 13/01/2023.


Jens, J.; Wang, A.; Leun, K.; Peters, D.; Buseman, M., 2021. Extending the European Hydrogen Backbone: A european hydrogen infrastructure covering 21 countries. Disponível em https://gasforclimate2050.eu/wp-content/uploads/2021/06/European-Hydrogen-Backbone_April-2021_V3.pdf. Acesso em 13/01/2023.


IEA, 2019. World Energy Outlook 2019, IEA, Paris. Disponível em https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2019. Acesso em 13/01/2023.


IEA, 2022. Current limits on hydrogen blending in natural gas networks and gas demand per capita in selected locations. Disponível em https://www.iea.org/data-and-statistics/charts/current-limits-on-hydrogen-blending-in-natural-gas-networks-and-gas-demand-per-capita-in-selected-locations. Acesso em 13/01/2023.


Neacsa, A.; Eparu, C.N.; Stoica, D.B., 2022. Hydrogen–Natural Gas Blending in Distribution Systems - An Energy, Economic, and Environmental Assessment. Energies 2022, 15, 6143. https://doi.org/10.3390/en15176143. Disponível em https://www.mdpi.com/1996-1073/15/17/6143. Acesso em 13/01/2023.


Senado Federal, 2022. Projeto de Lei n° 725, de 2022. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/152413. Acesso em 13/01/2023.


Tavares, A., 2021. O papel do transporte de gás natural na transição energética. Ensaio Energético, 07 de junho, 2021. Disponível em https://ensaioenergetico.com.br/o-papel-do-transporte-de-gas-natural-na-transicao-energetica/. Acesso em 08/01/2023.


UNECE, 2021. Defining sustainable energy: beyond colours. Disponível em https://unece.org/sites/default/files/2021-06/Defining_Sustainable_Hydrogen-Beyond_Colours.pdf. Acesso em 13/01/2023.






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