“Eu acredito que a água será um dia utilizada como combustível, em que o hidrogênio e o oxigênio que a constituem, de forma conjunta ou isolada, vão fornecer uma fonte inesgotável de calor e luz, em uma intensidade que o carvão não é capaz.” (Júlio Verne)
O aumento da demanda de energia em paralelo ao agravamento das mudanças climáticas mobiliza diversos países a encontrarem formas de energia limpas, eficientes e acessíveis. O hidrogênio verde é uma alternativa de grande potencial para alavancar a descarbonização e limitar o aquecimento global. Para entender o futuro, é indispensável entender o passado. Por isso, vamos contar a história do hidrogênio.
O hidrogênio é o primeiro elemento da tabela periódica e, consequentemente, o mais leve. É dito que o hidrogênio é o elemento mais antigo de nossa história, já que foi um dos primeiros elementos formados no Big Bang (Holzle, 2008). Em 1861, quando Kirschhoff e Bunsen demonstraram a presença do hidrogênio no Sol, ficou claro que o hidrogênio é o elemento mais abundante no universo, já que é o combustível de todas as estrelas (Pedrolo, 2014). O hidrogênio também levou ao surgimento de diversos outros elementos da tabela periódica, através de séries de fusões em estrelas chamadas de nucleossíntese (Holzle, 2008).
A presença do hidrogênio foi identificada em 1774. O sueco Carl Wilhelm Scheele e o inglês Joseph Priestley chegaram à conclusão, em estudos independentes, que há a presença de um ar descrito como “ar fogo” (Pedrolo, 2014). Porém, Henry Cavendish leva a fama por ter extraído o gás hidrogênio a partir de uma reação de zinco metálico com ácido clorídrico (James, 2009). Cavendish também fez uma demonstração à Sociedade Real de Londres aplicando uma faísca ao gás de hidrogênio e obtendo água como consequência. Posteriormente, isso levou à conclusão de que a água é composta por hidrogênio e oxigênio. Já em 1782, Jacques Charles utilizou o hidrogênio para encher um balão que percorreu uma distância de 25 km (Dunn, 2002). Apesar de sua utilização estar crescendo, o hidrogênio só recebeu seu nome em 1788, quando o químico francês Antoine Lavoisier nomeou o hidrogênio a partir das palavras gregas “hydro” e “genes” que significam “água” e “nascido da,” respectivamente (James, 2009).
Mesmo sendo o quarto elemento mais abundante na Terra, o gás hidrogênio não é encontrado no planeta (Emilin, 2022). Por isso, é necessário fabricá-lo. Em 1800, William Nicholson e Sir Anthony Carlisle descobriram que ao aplicar uma corrente elétrica em água, seria produzido hidrogênio e oxigênio, processo denominado eletrólise da água (James, 2009). Posteriormente, em 1838, o químico suíço Christian Friedrich Schönbein descobriu o efeito da célula a combustível. Mais tarde, em 1845, o inglês Sir William Grove, demonstrou a descoberta de Schönbein em uma escala prática, criando a bateria de gás voltaico, e ficou conhecido como o pai da célula a combustível (Coelho, 2018).
Nos anos 1920, o engenheiro alemão Rudolf Erren alterou a combustão interna de caminhões, ônibus e submarinos para usarem hidrogênio e misturas de hidrogênio. Nesses anos, o conceito de hidrogênio verde foi introduzido por J.B.S. Haldane. Em suas palavras: “durante épocas de ventos, a energia excedente será utilizada para a decomposição eletrolítica do hidrogênio” (Haldane, 1923 como citado em History of Information, 2013).
Desde 1782, o hidrogênio era usado em balões e dirigíveis. Porém, após 10 voos bem-sucedidos da Alemanha para os Estados Unidos, o dirigível Hindenburg sofreu um acidente em 1937. Especulações colocaram em dúvida o benefício do hidrogênio para meios de transporte por ser um gás inflamável. Com isso, a opinião pública fez com que os Estados Unidos alterassem a lei que proibia a exportação do gás hidrogênio por questões de segurança (Klein, 2012). O dirigível então foi reestruturado para utilizar gás hélio (Ibid., 2012).
O termo “economia do hidrogênio” entrou em circulação nos anos 1970 quando o eletroquímico John O’Mara Bockris publicou “Energia: a alternativa do Hidrogênio Solar” (Dunn, 2002). O termo foi impulsionado após o choque do petróleo de 1973, quando países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) reduziram drasticamente a produção deste hidrocarboneto, quase triplicando o seu preço em um período de menos de três meses. A era de petróleo barato e com oferta abundante havia então acabado. Países começaram a se mobilizar, criar fundos e agências para desenvolver outras formas de produção de energia. Em 1974, a Fundação Nacional de Ciências nos Estados Unidos transferiu então o Programa Federal de Pesquisa e Desenvolvimento de Hidrogênio para o Departamento de Energia (James, 2009). Além disso, foi realizada a primeira conferência internacional feita para discutir a energia do hidrogênio, a THEME (Conferência da Economia do Hidrogênio), em Miami (Ibid, 2009). Posteriormente, participantes, entre eles economistas, engenheiros e cientistas, criaram a Associação Internacional de Energia do Hidrogênio (Ibid). Além disso, a Agência Internacional de Energia foi criada tendo entre suas atividades a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias para a produção de energia através do hidrogênio (IEA, 2022).
Após a conclusão de que o hidrogênio não causou o acidente do Hindenburg em 1997, a fabricante de carros Daimler-Benz, em parceria com a Ballard Sistemas de Energia, anunciou um investimento de 300 milhões de dólares em pesquisa de células de hidrogênio para transporte (Mercedes-Benz Group Media, 2007). No ano seguinte, a Islândia anunciou o plano de criar a primeira economia de hidrogênio até 2030 junto com a Daimler-Benz e a Ballard Sistemas de Energia (James, 2009) . Em 1999, a Shell se comprometeu com o “futuro do hidrogênio” e formou uma divisão dedicada a ele. Também foram abertos os primeiros postos de abastecimento de hidrogênio em Hamburgo e Munique, na Alemanha. Para desenvolver a economia do hidrogênio na Islândia, a Empresa de Células a Combustível e Hidrogênio Islandesa foi criada em parceria com o Grupo Shell, a DaimlerChrysler (fusão da Daimler-Benz e Chrysler), e a Norsk Hydro – produtora de alumínio e energia renovável norueguesa (James, 2009).
Nos Estados Unidos, o Presidente George W. Bush investiu 1.2 bilhão de dólares para o desenvolvimento de células a combustível de hidrogênio viáveis para o comércio (Archives.org, 2003). Como ele disse, essa iniciativa poderia fazer com que “o primeiro carro dirigido por uma criança nascida hoje possa ser abastecido por baterias”. Atualmente, 30 estados nos EUA possuem iniciativas para o desenvolvimento de tecnologia e uso do hidrogênio (Ibid.).
Os últimos 20 anos foram de extrema importância para o desenvolvimento de tecnologias abastecidas pelo hidrogênio. Em 2004, foi lançado o primeiro veículo subaquático autônomo, o DeepC (James, 2004). Tanto a Honda como a Toyota lançaram carros movidos a hidrogênio, o FCX Clarity e o Mirai, respectivamente (Power Technology, 2020). Em 2019, a empresa americana de tecnologia Alakai mostrou o Skai, o primeiro transporte aéreo motorizado movido a hidrogênio (Ibid).
Além disso, diversos países se mobilizaram para estimular o desenvolvimento da tecnologia de hidrogênio. Em 2016, o Reino Unido lançou o projeto H21 para estudar a possibilidade de converter totalmente a rede de gás existente em hidrogênio (Bankes Hughes, 2022). Na Bélgica, a Companhia Marítima Belga, junto com o Porto de Antuérpia, anunciou o Hydro Tug – o primeiro rebocador movido a hidrogênio do mundo (Anglo Belgian Corporation, 2022). Em 2020, a Holanda iniciou o projeto de construção de casas abastecidas de hidrogênio; a Índia iniciou um projeto de uso de ônibus e carros abastecidos com hidrogênio em Leh e Nova Délhi; e no Japão, o FH2R – projeto de Pesquisa de Energia do Hidrogênio em Fukushima – foi inaugurado (Power Technology, 2020).
A necessidade de diminuir a emissão de gases de efeito estufa, juntamente com a necessidade de segurança na oferta de energia, impulsiona o desenvolvimento de tecnologias para o uso de energia renovável. A possibilidade de um futuro abastecido por hidrogênio vem sendo trilhada desde 1845, com a criação da primeira célula de hidrogênio. Talvez, com a recente mobilização de diversos países, assim como o boom de novas tecnologias, o futuro imaginado por Júlio Verne esteja cada vez mais próximo.
Referências
Anglo Belgian Corporation, 2022. CMB.TECH et le Port d'Anvers-Bruges accueillent HYDROTUG 1 en Belgique. Disponível em https://www.abc-engines.com/fr/news/hydrotug-1-arrives-at-port-of-ostend. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Archives.gov., 2003. Fact Sheet: Hydrogen Fuel: a Clean and Secure Energy Future. Disponível em https://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2003/02/text/20030206-2.html. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Coelho, P. 2018. William Grove – Inventor da Bateria de Gás Voltaico (Primeira Célula Combustível) in Engquimicasantossp. Disponível em https://www.engquimicasantossp.com.br/2018/11/william-grove-inventor-bateria-gas-voltaico.html. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Dunn, S., 2002. Hydrogen in History in The Globalist. Disponível em https://www.theglobalist.com/hydrogen-in-history/. Acesso em 21 de novembro de 2022.
Mercedez-Benz Group Media, 2007. History of fuel cell development at Mercedes-Benz. Disponível em https://group-media.mercedes-benz.com/marsMediaSite/en/instance/ko/History-of-fuel-cell-development-at-Mercedes-Benz.xhtml?oid=9274161. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Holzle, L., 2008. Hidrogênio, o primeiro e mais velho in Em Síntese. Disponível em https://www.emsintese.com.br/2008/hidrogenio-primeiro-velho/. Acesso em 15 de novembro de 2022.
Backer Hughes, 2022. 8 Things You Should Know About Hydrogen. Disponível em https://www.bakerhughes.com/company/energy-forward/8-things-you-should-know-about-hydrogen-energy. Acesso em 18 de novembro de 2022.
International Energy Agency, 2022. Global Hydrogen Review, 2022. Disponível em https://www.iea.org/reports/global-hydrogen-review-2022. Acesso em 27 de novembro de 2022.
History of Information, 2022. J.B.S. Haldane Presents an Early Vision of Transhumanism, and the First Proposal of a Hydrogen-Based Renewable Energy Economy. Disponível em https://www.historyofinformation.com/detail.php?entryid=4107. Acesso em 27 de novembro de 2022.
James, Jonas (2009). The History of Hydrogen in AltEnergyMag. Disponível em https://www.altenergymag.com/article/2009/04/the-history-of-hydrogen/555/. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Klein, Christopher, 2020. The Hindenburg Disaster: 9 Surprising Facts in HISTORY. Disponível em https://www.history.com/news/the-hindenburg-disaster-9-surprising-facts. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Power Technology, 2020. Hydrogen: Timeline. Disponível em https://www.power-technology.com/comment/hydrogen-timeline/. Acesso em 15 de novembro de 2022.
Verne, J., 1874. The Mysterious Island. Disponível em https://www.gutenberg.org/ebooks/1268. Acesso em 27 de novembro de 2022.
Figuras
Wikimedia Commons contributors, "File:Cavendish Henry.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Cavendish_Henry.jpg&oldid=661032564 (acesso em 27 de novembro de 2022).
Wikimedia Commons contributors, "File:Christian Friedrich Schönbein.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Christian_Friedrich_Sch%C3%B6nbein.jpg&oldid=675384651 (acesso em 27 de novembro de 2022).
Wikimedia Commons contributors, "File:Hindenburg disaster.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Hindenburg_disaster.jpg&oldid=694801047 (acesso em 27 de novembro de 2022).
Wikimedia Commons contributors, "File:Hydrogen refueling.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Hydrogen_refueling.jpg&oldid=673813035 (acesso em 27 de novembro de 2022).
Wikimedia Commons contributors, "File:William Robert Grove 2.jpg," Wikimedia Commons, the free media repository,https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:William_Robert_Grove_2.jpg&oldid=703370614 (acesso em 27 de novembro de 2022).
Commentaires